O Diálogo Do Homem Contemporâneo com Raízes Culturais na Obra de Raiara Monteiro — Lohanna Letícia da Silva Oliveira
O grafismo, presente na pintura de Raiara Monteiro, encontra signos mágicos fundidos com tradições populares que habitam o vasto território brasileiro, evocando desde no catolicismo o hierofante (cruz papal) até os ícones ritualísticos que constituem tradições étnicas indígenas e os ecos das inúmeras “Africas” presentes no Brasil. Trata-se de uma expressão cultural que costura o tempo entre linhas bifurcadas. A cultura visual manifestada nesta obra, perpassa por transformações e fusões de variados símbolos presentes entre a cultura popular e a contemporaneidade.
O tridente característico do ponto riscado de Exu, Orixá mensageiro entre os homens e os deuses, representando os elementos água, ar e terra, se sincretiza na pintura em guache de Raiara Monteiro com a cruz papal hierofante, formada por uma haste vertical e três barras cruzadas. A tríade sincrética se emancipa de seu referencial folclórico para alcançar um novo percurso, adquirindo um significado e um contexto atual.
Aludindo para uma forma de folha lanceolada ou uma ponteira de flecha, ambos expandem as dimensões alcançadas pela obra no imaginário evocado. Na porção inferior há na base central um círculo que duplica duas bifurcações, que versa com o símbolo da paz (imagem 1) utilizado por manifestantes ingleses do Comitê de Ação Direta Contra a Guerra Nuclear, cunhando o mundialmente conhecido símbolo pacifista em prol da campanha do desarmamento nuclear, desenhado por Gerald Holtom no ano de 1958, tomando como base as letras D e N na linguagem de sinalização das bandeiras náuticas (PETRUZZELLO, 2017).
Imagem 1 e 1 — na esquerda, símbolo da paz utilizado na campanha do desarmamento nuclear, na direita, letras D e N na linguagem de sinalização das bandeiras náuticas.
Fonte: Petruzzello[1] e Encyclopædia Britannica (2017)
Agregando para uma cosmovisão contemporânea a necessidade de uma nova perspectiva acerca da passagem do tempo, visando comunicar o presente com o passado e espiritualidade para dar voz ao futuro. “Vivenciar o tempo significa habitar uma temporalidade curvilínea, concebida como um rolo de pergaminho que vela e revela, enrola e desenrola, simultaneamente, as instâncias temporais que constituem o sujeito” (MARTINS, 2001, p. 79).
Roland Robertson (1992) enfatiza que a globalização incita a criação e a incorporação da localidade, moldando a compreensão do mundo na totalidade. O autor contra-argumenta a ideia de globalização como inevitavelmente em tensão com a ideia de localização. Portanto, o quadro de Monteiro explicita o contraste da carga cultural da humanidade contemporânea, ainda que o grafismo crie ecos com os padrões da tribo Ndebele na sua percepção formal e cromática, a artista incita sua individualidade brasileira sincrética em meio a referenciais globais e locais.
Criando uma discussão para o apagamento de artistas africano quanto a individualidade, nota-se por parte dos críticos e historiadores um enfoque para determinar a origem tribal da produção, uma vez que na sua decrépita concepção, os grupos étnicos na totalidade, de alguma maneira vaga, produzem o estilo e o artista o apenas reproduz com maior ou menor habilidade as concepções estéticas da comunidade.
Raiara, ao sincretizar o referencial e privá-los das suas próprias virtudes originárias, argumenta que da mesma forma que a arte tradicional africana tem seus objetivos sociais, é possível gerar uma produção a partir de referenciais simbólicos mágicos e sincréticos, cujo objetivo não está definido pela matriz da religião ou ritualístico, encontramos similar abordagem de arte pela arte na produção africana, por exemplo, no grupo étnico dos Fons do Benim (Daomé), que fabricam peças fundidas em latão de animais e de pessoas no trabalho ou em procissões, que não têm intenção religiosa ou didática (WILLET, 2017).
Monteiro incita um diálogo do homem contemporâneo com as raízes culturais que ecoam em sua percepção da passagem do tempo com o passado e presente em constante fusão. Explorando as fronteiras entre o mágico e o mundano, a artista cria uma ponte entre mundos, dando luz para a necessidade de produzir uma arte capaz de sobrepor as camadas de vida humana. “Os mundos material e imaterial na nossa cultura são muito facilmente transpostos. O subconsciente, a magia e o espiritual são campos de disputa e estão em conflito” (ESBELL; MUNIZ, 2021, não paginado).
Sua obra materializa um hierofante da natureza, trazendo uma nova dimensão para este homem contemporâneo, entre o tribal e o urbano. Um cetro, uma ponteira de flecha/lança ou uma folha? Todos simultaneamente, pois incita a defesa não pelo armamento e sim pela linguagem visual atrelada a signos simbólico-mágicos.
BIBLIOGRAFIA
ENCYCLOPEDIA britannica. Distress signal. In: Encyclopedia Britannica, 30 mai. 2017. Disponível em: https://www.britannica.com/technology/distress-signal. Acesso em: 21 nov. 2022.
ESBELL, J.; MUNIZ, L. Jaider Esbell e a sobreposição de mundos”. in: REVISTA Select. V. 10, n. 50, abr.-jun. 2021. Não paginado. Disponível em: https://www.select.art.br/jaider-esbell-e-a-sobreposicao-de-mundos/. Acesso em 01 de nov. de 2022.
FERNANDES, S. Sem título: fotografia para o acervo do material avaliativo da disciplina Critica I, ministrada na Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa. 2022. 1 fotografia. 2195 x 3444 pixels.
MARTINS, L. M. A oralitura da memória. In: FONSECA, M. N. S. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 347 páginas.
PETRUZZELLO, M. Where Did the Peace Sign Come From?. In: Encyclopedia Britannica, 14 jun. 2017. Disponível em: https://www.britannica.com/story/where-did-the-peace-sign-come-from. Acesso em: 21 nov. 2022.
ROBERTSON, R. Globalization: Social Theory and Global Culture. Londres: Sage Publications, 1992. 306 páginas.
WILLET, F. Arte africana. Tradução: Tiago Novaes. São Paulo: Edições Sesc, 2017. 312 páginas.
Essa crítica foi elaborada no ano de 2022.