“GRAND T” — Bianca Maria Dias de Araújo
Sabe-se que há milhares de anos a humanidade se dedica a compreender a natureza fundamental da realidade e a sua relação com o cosmos. É nessa busca por sentido existencial que se origina uma gama complexa de meios que confiram significado às manifestações mundanas, através de crenças, filosofias, práticas religiosas, entre outros. Junto a esta colcha de retalhos de simbolismos diversos que se transmutam e coexistem, algumas vezes em sentidos antagônicos dispostos de maneira anacrônica, difundidos ou silenciados ao longo da história, utilizando diferentes suportes, veículos e linguagens, há também o intento pela resolução da inquietude humana, em sua ânsia e esforço para alcançar o resultado incerto do seu destino, por onde diversas culturas ao redor do globo apresentaram práticas de adivinhação e profecia, através do uso de artes divinatórias e oráculos.
Dessa maneira, as práticas oraculares atuariam como meio de compreender e “mapear” experiências e seus desdobramentos cotidianos, desvelar mistérios e indagações pessoais (GUERRIERO, 2002). É nessa perspectiva que a obra da artista Lohanna Oliveira, de pseudônimo Lonelas, convida seu visitante a tentar definir seu próprio destino. Trata-se de uma instalação no formato de uma mesa-tabuleiro com cartas ciganas deliberadamente sequenciadas pela artista, cobertas por um tampo de vidro, sobre o qual runas em quartzo verde encontram-se dispostas, na expectativa pela interação de seu participante.
O título, Grand T faz referência ao Grand Tableau Lenormand, uma tiragem de baralho cigano que recebe esse nome devido a uma célebre cartomante francesa da era napoleônica, Marie Anne Adelaide Lenormand. Apesar das cartas não terem sido concebidas pela mesma, são chamadas assim mais por um interesse de marketing do que por sua real origem (WEN, 2013). Este método de cartomancia, diferentemente do utilizado no tarot convencional, que conta com a leitura e interpretação dos arcanos maiores, utiliza apenas o baralho comum para as divinações.
A técnica utilizada na execução das 36 cartas é fruto de oficinas online de ateliê voltadas para colagem analógica que a artista participou. Como material, ela aproveita dois livros velhos de seu ensino médio, um de biologia e outro de geografia. É no folhear desses exemplares que lhe surge a inspiração de fazer as cartas ciganas, as quais se propôs a realizar quatro ou cinco por dia, dentro dos limites que seu corpo a permitia trabalhar. Durante esse processo, Oliveira (2022) relata ter se inscrito em diversos editais da sua área, e que a necessidade de escrever mini biografias acerca de sua poética, seu lugar e sobre si mesma levaram-na a uma série de questionamentos. Até a própria natureza dos eventos que participava reafirmava tais dúvidas.
O fato de ser uma artista brasileira, nascida em Porto Velho (RO), atualmente residente na cidade de João Pessoa (PB), com um pai carioca e uma mãe gaúcha, além dos hábitos de viagem e de mudança muito presentes em sua família, formam em seu imaginário uma consciência ampla de Brasil de difícil definição identitária. É na tentativa de definir o seu lugar, seu espaço, seu local de pertencimento, não apenas num sentido geográfico, mas considerando também aqueles que a experiência concreta não alcança, o lugar psíquico, mítico e espiritual, que Grant T vai ganhando forma através de um processo ambíguo de escolha intuitiva das imagens que se apresentam para ela, onde as assimila aos motivos iconológicos do baralho cigano original, numa entrega que também abraça o acaso durante sua execução.
A própria ação de criar as cartas reconhecendo as figuras arquetípicas nas imagens que apareciam nos livros, e a maneira como posteriormente as lâminas foram dispostas sobre a mesa, demonstram um processo de abstração, montagem e interpretação conjuntas que fazem lembrar Aby Warburg e seu Atlas Mnemosyne. Este, que recebe como homenagem o nome da musa grega da memória Mnemosine, buscava estabelecer uma continuidade entre as imagens, que carregavam consigo uma “fórmula de pathos” (pathosformel), formas simbólicas de lidar com a representação das paixões e anseios humanos (WARBURG, 2015). Assim, compreendia o ato artístico como resultado da expressão da mente humana, que é por sua vez dotada de um conjunto de elementos sintomáticos de memória social, com temporalidade e espaço próprios, que se transformam tanto no âmbito de suas significações como nos seus motivos formais ao longo da história.
Grand T é uma obra engendrada por um exercício de introspecção, repleto de sensibilidade e memória, alimentado pelas inquietações existenciais particulares de sua autora, mas que no seu âmago deseja transpor o espaço-tempo e gerar significado para além do desenvolvido intimamente por ela, algo que pode ser percebido em sua atitude de deixar runas sobre o vidro para serem manuseadas. E não só, é possível também estabelecer um paralelo como as práticas de divinação de abordagem terapêutica, a exemplo do Tarô sob uma perspectiva junguiana, através da associação entre as representações simbólicas arquetípicas do “inconsciente coletivo” e as lâminas do baralho, que trariam à luz informações inconsciente à dimensão real, como defende POSSEBON e CAVALCANTI (2020). Da mesma forma que a própria artista utiliza o tarô para compreensão de seu estado emocional, como uma forma de meditação, algo que por sua vez estabelece diálogo com o esforço de Warburg em mensurar os sintomas de oscilação da mente humana e sua necessidade de transformar suas ânsias psíquicas em matéria artística.
REFERÊNCIAS
GUERRIERO, S. Jogos divinatórios: temporalidade, imaginário e vivência mítica. Revista Imaginário, v.8, p.332–347, 2002.
OLIVEIRA, Lohanna Letícia da Silva. Áudios concedidos a Bianca Maria Dias de Araújo. João Pessoa, 11 Out. 2022.
POSSEBON, Fabrício; CAVALCANTI, Fernanda Pinheiro. Da percepção extrassensorial ao Tarô como recurso terapêutico: um olhar fenomenológico. Revista Encontros Teológicos, v. 35, n. 1, 2020.
WARBURG, Aby. História de Fantasmas para Gente Grande: escritos, esboços e conferências. Tradução Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Companhia das Letras, p. 363–377, 2015.
WEN, Benebell. The Lenormand: Nutshell Summary of the Petite Lenormand, from History to Practice. 10 jun. 2013. Disponível em: < https://benebellwen.com/2013/06/10/the-lenormand-nutshell-summary-of-the-petite-lenormand-from-history-to-practice/>. Acesso em: 14 Nov. 2022.
Essa crítica foi elaborada no ano de 2022.